Por
Adiel Teófilo.
O
princípio do Estado laico tem sido objeto de várias controvérsias dentro de
alguns órgãos públicos em nosso país, apesar da clareza do direito fundamental
de liberdade religiosa, assegurado pela Constituição Federal.
Essas
controvérsias são decorrentes basicamente dos equívocos de interpretação e
aplicação do princípio da laicidade. Esses equívocos interpretativos concorrem
para fomentar uma espécie de aversão a qualquer atividade de caráter religioso
no interior de repartições públicas, escolas, hospitais, como se tal princípio
tivesse por finalidade proibir toda e qualquer manifestação religiosa nesses locais.
Essa
aversão proibitiva de manifestações religiosas no interior de entidades públicas
não encontra respaldo na legislação. Além disso, afronta o princípio da
liberdade de exercício dos cultos, previsto na Constituição Federal, no art. 5º,
inc. VI: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da
lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;.
Essa garantia de liberdade religiosa é uma importante
conquista dos cidadãos brasileiros, que pode ser exercida em perfeita harmonia
com o princípio do Estado laico. Não há conflito entre esses princípios, quando
aplicados nos moldes previstos na legislação. A história e a evolução Constitucional
Brasileira nos ajudam a compreender como é possível harmonizar a prática de
culto com a laicidade do Estado.
O direito de liberdade religiosa somente foi
inserido no ordenamento
jurídico pátrio com o advento da Constituição Republicana. Trata-se da Constituição
da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, cujo art. 72, § 3º, assim prescrevia, ipsis litteris: Todos os individuos e confissões religiosas podem exercer publica e
livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens,
observadas as disposições do direito commum.
Ressalta-se que a Constituição anterior não garantia a liberdade
de culto. Tão somente permitia a liberdade de crença, desde que não externassem
publicamente as manifestações religiosas. Isso porque o Império tinha como
religião oficial a católica apostólica romana. A Constituição Política do Império do Brazil, outorgada em 25 de
março de 1824, estabelecia no art. 5º, in
verbis: A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do
Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou
particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.
A Constituição Federal em vigor, promulgada em 05 de outubro de
1988, seguindo a mesma linha das Constituições posteriores à Republicana,
manteve o princípio da liberdade religiosa. Instituiu também o princípio do
Estado laico, mediante a proibição imposta à União, Estados, Distrito Federal e
Municípios, de oficializar qualquer igreja ou culto religioso. Desse modo, esses
entes públicos não podem apoiar um segmento religioso e nem discriminar nenhuma
religião. Devem se manter em posição absolutamente neutra, completamente imparcial
em relação aos cultos religiosos existentes no país.
Essa imparcialidade imposta ao Estado não implica dizer que estão
proibidas as manifestações religiosas em espaços públicos. Não significa também
que o Estado, por meio dos seus agentes e servidores, deve impedir as práticas públicas
de culto nos interior dos órgãos públicos. Ao contrário disso, o Estado não
pode causar nenhum embaraço e nem dificultar a atividade religiosa exercida livre
e espontaneamente por seus cidadãos, desde que respeitada a liberdade de convicção
e crença de cada pessoa.
Essas limitações são impostas aos entes públicos pela Constituição
Federal, que dispõe no art. 19 dessa forma: É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes
relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração
de interesse público;. Esses são os preceitos que traduzem o real sentido do
princípio de Estado laico.
Acerca do referido princípio, Pedro Lenza, na obra Direito
Constitucional Esquematizado, 17ª edição, Editora Saraiva, assim preleciona: existe separação entre Estado e Igreja, sendo o Brasil um
país leigo, laico, ou não confessional, não existindo, portanto, qualquer
religião oficial da República Federativa do Brasil. E ao discorrer
acerca da liberdade religiosa, ressalta os seguintes aspectos: Dentro de uma ideia de bom-senso, prudência
e razoabilidade, a Constituição assegura o direito a todos de aderir a qualquer
crença religiosa, ou recusá-las, ou, ainda, de seguir qualquer corrente
filosófica, ou de ser ateu e exprimir o agnosticismo, garantindo-se a liberdade
de descrença ou a mudança da escolha já feita.
Diante disso, a correta interpretação do princípio de Estado laico
conduz necessariamente ao entendimento de que tal princípio não tem o condão de
suprimir a liberdade religiosa dos cidadãos. Muito pelo contrário, como visto
acima, a laicidade estatal impõe uma vedação não aos indivíduos, mas ao próprio
Estado, proibindo-o de assumir uma bandeira religiosa e de impedir o livre
exercício das expressões religiosas por parte daqueles que possuem uma crença.
Decorre ainda desse princípio, o fato de que o Estado, por meio dos seus
agentes e servidores, deve permitir que as manifestações de culto ocorram em
ambientes públicos, tais como escolas, hospitais, presídios, dentre outros. Essa
possibilidade de culto fica claramente evidenciada pela Constituição Federal que
garante o acesso de religiosos a locais restritos, para a prestação do serviço
de assistência religiosa, denominado capelania, conforme art. 5º, inc. VII: é
assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas
entidades civis e militares de internação coletiva;.
O supracitado dispositivo
Constitucional foi regulamentado pela Lei nº 9.982, de 14 de julho de 2000,
cujo art. 1º dispõe: Aos religiosos de
todas as confissões assegura-se o acesso aos hospitais da rede pública ou
privada, bem como aos estabelecimentos prisionais civis ou militares, para dar atendimento
religioso aos internados, desde que em comum acordo com estes, ou com seus
familiares no caso de doentes que já não mais estejam no gozo de suas
faculdades mentais. Nota-se que esse preceito legal autoriza expressamente
a prática religiosa em hospitais da rede pública, bem como em estabelecimentos
prisionais civis ou militares, unidades organizadas e mantidas pelo Estado,
desde que observadas as peculiaridades desses ambientes.
Acrescenta-se como mais uma evidência
de que o Estado deve permitir a prática de culto em repartições públicas, o
fato de que algumas instituições criaram quadro próprio de capelania.
Os religiosos que compõem esses quadros são denominados capelães e prestam
assistência religiosa prioritariamente aos integrantes dessas instituições
públicas. É o caso da Polícia Militar e Corpo de Bombeiro Militar dos Estados
da Federação, bem como das Forças Armadas.
Cita-se a título
de exemplo a Lei nº 6.923, de 29 de junho de 1981, que
organizou o Serviço de Assistência Religiosa nas Forças Armadas. O art. 2º
desse diploma legal preconiza: O Serviço
de Assistência Religiosa tem por finalidade prestar assistência
religiosa e espiritual aos militares, aos civis das organizações militares e às
suas famílias, bem como atender a encargos relacionados com as atividades de
educação moral realizadas nas Forças Armadas.
Constata-se, portanto,
que a Constituição Federal e as Leis Federais acima referidas autorizam de modo
expresso a atividade religiosa no interior de hospitais públicos, presídios civis
e militares do Estado, bem como a realização do serviço de capelania nas
instituições militares dos Estados da Federação e nas Forças Armadas. Logo, não
há como impedir a manifestação religiosa em escolas e demais repartições públicas
não referidas expressamente. Isso porque deve existir igualdade de direitos e
de tratamento entre todos os cidadãos brasileiros, como forma de promover o bem
estar de todos, sem preconceitos e sem quaisquer outras formas de discriminação.
Diante do exposto, conclui-se que há
perfeita harmonia entre o princípio da liberdade religiosa e o princípio do
Estado laico, não existindo qualquer conflito entre ambos. A laicidade do
Estado não impõe vedações aos indivíduos, mas ao próprio Estado, que fica impedido
de oficializar culto religioso ou igreja, bem como de provocar embaraços ao
livre exercício das manifestações religiosas.
Ademais, Estado laico não significa afirmar que
estão proibidas as práticas de culto no interior de repartições governamentais. Isso porque a legislação autoriza a prestação de assistência religiosa (capelania) em
hospitais públicos, presídios civis e militares, Polícias e Bombeiros Militares
dos Estados da Federação e nas Forças Armadas. Enfim, essa liberdade de culto se
estende às demais entidades públicas, como escolas e repartições não referidas
expressamente em lei, por força do princípio da igualdade de direitos entre os
cidadãos brasileiros.
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