
Recebi recentemente um e-mail de alguém descontente com o modelo celular
implantado em sua igreja. Por achar pertinentes as questões por ele levantadas,
resolvi usá-lo em um artigo sobre o tema. Ei-lo abaixo:
Há algum tempo tenho andado triste
com algumas coisas que têm acontecido em minha congregação. O trabalho lá é
celular e, como tal, a meta é que sejam formados e enviados mais e mais líderes
de células. Porém, o meu entendimento é de que alguém que lidera uma célula é,
na prática, um pastor, pois tem que cuidar, de e discipular pessoas - e isso,
no meu entendimento, é um dom do Espírito. Tenho a certeza absoluta de que não
tenho chamado para a vocação pastoral, por isso nunca me prontifiquei e nem
quero ocupar tal cargo na igreja, porque o que gosto de fazer é ensinar. Sendo
assim, por não me prontificar a fazer o que a liderança considera aquilo que
todos têm que fazer, fui posto de lado (acho que sou considerado algum tipo de
rebelde, pois por muitas vezes contestei esse ponto de vista com a liderança, o
que percebo deixar meu pastor aborrecido). Até aí tudo bem, pois não sou
obrigado a fazer aquilo que não me sinto bem em realizar.
A gota d'água ocorreu ontem, quando
fui questionar meu pastor a respeito de uma decisão tomada pela liderança da
igreja: a partir deste ano, não mais teremos os cultos matutinos, pois antes
havia a escola bíblica seguida do culto. Esta escola bíblica (chamada de ESCOLA
DE DISCÍPULOS) consiste na ministração de três apostilas durante todo o ano, as
quais já estudei. Espera-se que, nos anos subsequentes, haja novos estudos que
abordem novos pontos para nossa edificação espiritual. Mas, nos anos seguintes
são ministradas as mesmas apostilas, com os mesmos estudos. Então comuniquei a
ele que quero e preciso me alimentar mais da Palavra (nos cultos da manhã, pelo
menos, eram pregadas mensagens de edificação para igreja; agora nem mais isso)
e que vou passar a frequentar a EBD de alguma congregação de minha cidade, e
a sua resposta foi que eu preciso entrar na "visão", porém sou
livre para fazer o que eu quiser e para frequentar a EBD que eu bem
entender. Hoje em dia, o argumento mais utilizado para desestimular aquele
que deseja aprofundar-se no estudo da Palavra é o de que "a letra
mata".
Meu irmão, desculpe-me a expressão,
mas estou de saco cheio disso, desestimulado até em continuar ali. Será que é
algum crime o querer conhecer as Escrituras, o buscar o entendimento na Palavra
daquilo que o Senhor Deus quer para a minha vida? Será que sou algum rebelde em
não concordar com alguns pontos dessa "visão que Deus deu para o
ministério"? Amado, desculpe o desabafo, mas preciso de uma palavra.
Acredito que a formação de pequenos grupos pode ser salutar para toda a
congregação. Apesar da Bíblia referir-se a cada um de nós como membros do Corpo
de Cristo, e não como células. E no caso, chama-se “célula” o pequeno grupo, e
não o indivíduo em si. Ora, se o grupo é uma célula, o indivíduo é o que? Uma
molécula? rs
Bricandeiras à parte, tenho visto o grande estrago que tem sido feito em
muitas igrejas por conta de uma aplicação errônea dessa ‘visão’. Se o objetivo
fosse tão somente de comunhão, ou mesmo, evangelístico, tudo bem. O problema é
que se coloca sobre cada membro da célula a expectativa de tornar-se também
líder de seu próprio grupo. E como você mesmo disse, nem todos são chamados
para isso. Tal expectativa acaba se tornando numa opressão.
Será que Maria Madalena, que seguia de perto o Mestre, tornou-se líder
de doze? Será que cada um dos apóstolos teve que formar seu próprio colégio
apostólico com outros doze? Onde está escrito que Paulo liderava um grupo de
doze?
Tenho percebido pelo menos dois efeitos colaterais em igrejas que
adotaram tal estratégia de crescimento: a produção de células cancerígenas, e
de celulites e estrias.
Deixe-me explicar cada um desses efeitos:
Células cangerígenas – Acredito
que devemos abandonar a analogia celular e voltar à analogia bíblica dos
membros do corpo. Por que digo isso? Simples. Porque as células são sempre
uniformes. Se reproduzem uniformemente. E quando ocorre alguma anomalia, é
porque produziram células cancerígenas. O câncer é uma doença
caracterizada pela produção de células que crescem e se dividem sem respeitar
os limites normais, invadem e destroem tecidos adjacentes, e podem se espalhar
para lugares distantes no corpo, através de um processo chamado metástase.
Imagine o estrago que uma “célula cancerígena” pode produzir no corpo de
Cristo! Paulo chama a atenção de Timóteo para o fato de que havia se
introduzido na igreja pessoas cuja palavra “corrói como câncer” (2
Tm.2:17).
O problema se agrava quando tais pessoas são elevadas ao posto de
liderança. O modelo celular insiste em que cada discípulo deve aspirar à
liderança, criando sua própria célula. Por conta disso, muitas divisões tem
ocorrido em igrejas antes sadias. Se em vez de adotarmos a analogia de células,
voltarmos à analogia bíblica de membros, perceberemos que nem todos são
vocacionados para servirem como líderes. Basta conferir 1 Coríntios 12:12-31.
Uns são chamados para serem ‘mãos’, outros ‘pés’, outros ‘boca’, e assim por
diante. Porém, todos têm valor no contexto do corpo, e devem situar-se numa
relação de interdependência. Imagine se todos fossem ‘olhos’, quem os
socorreria na hora em que fossem invadidos por um cisco?
Células canceríginas são autofágicas, isto é,
devoram-se umas as outras. Isso já acontecia entre os crentes primitivos. Como
disse o escritor de Eclesiastes, não há nada novo debaixo do sol. Paulo
repreende os gálatas por estaremos devorando-se uns aos outros (Gl.5:15). Um
modelo que insiste com a ideia de que todos devem ser líderes, acaba por
estimular a competitividade entre seus membros.
E o que é que causa o aparecimento de células cancerígenas? Entre vários
fatores, quero destacar o consumo de comida enlatada. Alguns, no afã de
alimentarem bem seus ‘discípulos’, saem em busca de novidades, e encontra nas
prateleiras dos mercados religiosos todo tipo de teologia enlatada, ora ‘made
in USA’, ora ‘made in Colombia’, ou ‘Coréia’, ou ‘Europa’, e assim por diante.
Ovelhas preferem e precisam de capim fresco, tirado direto do solo, sem
conservantes, nem qualquer outra química.
Celulite e estrias – Ora, o apóstolo Paulo diz que “Cristo amou a
igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com
a lavagem da água, pela palavra, a fim de apresentá-la a si mesmo igreja
gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e
irrepreensível” (Ef.5:25b-27). Deixe-me aproveitar que Paulo usou a expressão
“coisa semelhante”, para acrescentar aqui celulites e estrias.
Imagine a noiva de Cristo cheia de celulite e estrias! Pois o modelo
celular, da maneira como tem sido implementado nas igrejas, tem produzido
exatamente isso.
O fato é que a igreja, em vez de crescer, engordou, tornou-se obesa, e o
pior é que, pelo jeito, trata-se de obesidade mórbida.
A celulite é caracterizada principalmente pelo
aparecimento de ondulações da pele, dando a esta o aspecto de casca de laranja.
Entre as causas da celulite, destacamos a alimentação e a vida sedentária.
Troca-se a boa comida caseira pelos fastfoods. Abandona-se os cultos na igreja,
limitando-se a frequentar as reuniões celulares. Os pequenos grupos começam a
ser visto como um fim em si mesmos, produzindo um tipo de sedentarismo
espiritual.
Já as estrias caracterizam-se por um rompimento das
fibras elásticas que sustentam a camada intermediária da pele, formada por
colágeno e elastina (responsáveis pela sua elasticidade e tonicidade). Podem
surgir de diversas formas, dentre elas: o efeito sanfona e o crescimento
rápido.
Talvez o que tem contribuído para que igrejas adotem este modelo seja
justamente a promessa de crescimento rápido. Mas o que ele realmente produz é
inchaço, e não crescimento (1 Co.4:19; 5:2). Ora, quando um membro incha, é
sinal de que algo está errado no organismo. Um crescimento saudável demanda
tempo, empenho, perseverança. Não há fórmulas mágicas. Basta um alimento
saudável, extraído da boa e fiel Palavra de Deus, e um ritmo de vida
antisendentário, em que os membros sejam incentivados a darem testemunho de sua
transformação lá fora e a estenderem as mãos aos necessitados deste mundo. Daí
é só esperar. Um planta, outro rega, mas é o próprio Deus quem Se
responsabiliza em promover o crescimento (1 Co.3:6).
Hermes C. Fernandes
Hermes C. Fernandes