Possibilidades e cautelas na aplicação
de medida disciplinar aos membros de organização religiosa.
O processo de democratização vivenciado em nosso país
consagrou a ampla liberdade religiosa. É garantido a todos o direito de
escolher sua própria convicção de fé, bem como assegurado que ninguém será
privado de direitos por motivo de crença religiosa, conforme artigo 5º
incisos VI e VIII da Constituição Federal. Nesse contexto, as organizações
religiosas são criadas e organizadas livremente, podendo estabelecer as
estruturas administrativas internas e desenvolver as atividades eclesiásticas
conforme as suas convicções e costumes, de acordo com o artigo 44 § 1º do Código Civil.
A
par dessa liberdade de estruturação e de funcionamento, convém analisar a forma de aplicação de disciplina de membros adotada pelas igrejas evangélicas. De modo
geral, os diversos sistemas em uso podem ser assim classificados:
a) Sistema rígido: utilizado comumente por
denominações conservadoras quanto aos usos e costumes, caracteriza-se pela
existência de regras costumeiras, ou escritas em estatuto ou regimento interno,
cuja violação enseja a aplicação de disciplina pela liderança, conforme a
gravidade e as consequências da falta cometida;
b) Sistema flexível: distingue-se por não
existir procedimento previsto em estatuto para a aplicação de disciplina aos
membros, resolvendo-se cada caso individualmente pela liderança ou conselho de
líderes, quando julgado conveniente e oportuno, tal como se constata nas
denominações mais liberais em relação aos usos e costumes; e,
c) Sistema em transição: está presente em igrejas
que adotaram sistema rígido e ao longo do tempo estão migrando para o flexível,
mediante alteração estatutária ou não, modificando assim os procedimentos e
reduzindo os casos sujeitos à aplicação de disciplina. Pode ocorrer o inverso,
do flexível para o rígido, porém é raro encontrar igreja que experimenta no
atual contexto social o recrudescimento do sistema de disciplina.
Essa
transição verificada em igrejas que
estão abandonando o sistema rígido, mantido durante longo tempo com muito
zelo por abnegados Pastores e Membros, pode ser compreendida a partir de alguns
fatores. Destacam-se os seguintes: rejeição indiscriminada aos modelos tradicionais; amoldamento dos líderes e liderados paulatinamente
aos usos, costumes e práticas, interpretadas tradicionalmente como contrárias
às Escrituras; perda crescente do zelo Bíblico doutrinário pelas novas gerações;
redução das diferenças de comportamento entre cristãos evangélicos e a
sociedade; declínio da autoridade moral de dirigentes por envolvimento em
irregularidades administrativas, financeiras, nepotismo, política partidária e
outras práticas incompatíveis com as finalidades essenciais da organização
religiosa como IGREJA.
Apesar
disso, há denominações que se esforçam
para manter os padrões de disciplina cristã. No entanto, estão se
intimidando perante a mentira, diabólica, de que na atual conjuntura
democrática não se pode mais disciplinar ninguém, sob pena de causar dano moral
e consequentemente ser obrigado a indenizar a pessoa disciplinada. A verdade não é bem assim! Não é toda e qualquer
aplicação de disciplina que indiscriminadamente caracteriza ofensa moral. Até
porque existem outras formas de imposição de reprimenda aceitas pela sociedade,
e nem por isso ferem a honra ou a dignidade das pessoas.

Essa ilustração ressalta
muito bem a necessidade de existir regulamento pré-estabelecido e a
possibilidade de exigir posteriormente o cumprimento das regras. Esses
aspectos devem estar presentes nas igrejas ao estabelecer ou executar o sistema
de disciplina, visando preservar não apenas a doutrina Bíblica, os bons
costumes e o elevado padrão de caráter e comportamento cristão, mas também
assegurar direitos inerentes aos membros. Porquanto, do ponto de vista
espiritual, os membros fazem parte do Corpo de Cristo, mas tocante às relações
sociais, integram a organização religiosa, compreendida legalmente como pessoa
jurídica de direito privado, titular de direitos e sujeita ao cumprimento de
obrigações.
Por essas razões é
importante constar no estatuto ou no regimento interno as principais regras
sobre a aplicação de medidas disciplinares. Devem ser especificados: o
procedimento a ser observado, se oral ou escrito; as sanções que os
membros estão sujeitos, tais como advertência, suspensão ou exclusão; e
as práticas ou omissões que são consideradas faltas disciplinares,
segundo a Bíblia Sagrada e os costumes da igreja. A título de exemplo, segue o
rol abaixo, exemplificativo, pois alcança outras condutas que não estão
expressamente mencionadas:
Constituem-se faltas disciplinares, dentre outras:
I – faltar sem justa causa às reuniões ou
atividades ou descumprir as normas estatutárias ou regimentais da igreja;
II – deixar de observar as doutrinas Bíblicas,
usos ou costumes adotados pela igreja;
III - praticar atos condenados pela Bíblia
Sagrada tais como prostituição, fornicação, adultério, homossexualismo ou
lascívia de todo gênero, inclusive visual ou pornográfica, idolatria,
feitiçaria, maledicência, uso de palavra torpe, calar ou faltar a verdade, insubmissão,
rebeldia, inimizade, porfia, ciúme, cobiça, ira, discórdia, dissensão, facção,
inveja, ingestão de bebida alcoólica ou substância entorpecente, glutonaria ou coisas
semelhantes a essas;
IV – descumprir sem justo motivo qualquer
obrigação lícita e possível que assumir livremente com pessoa física ou
jurídica, seja de direito público ou privado;
V – praticar qualquer ato contrário à ética, aos
bons costumes, à dignidade da condição de membro ou que comprometa a reputação
da igreja perante terceiros;
VI – praticar ação ou omissão que de qualquer
modo constitua descumprimento sem justa causa das disposições legais ou regulamentos
vigentes no Brasil ou no exterior, desde que tais disposições não sejam
contrárias aos preceitos da Bíblia Sagrada;
VII – colaborar, participar ou cometer infração
penal dolosa, por qualquer meio, bem como envolver-se em fato que cause
escândalo ou que provoque clamor público.
Outro cuidado importante é esclarecer as disposições disciplinares no
momento em que as pessoas são admitidas como membro. Não seria justo alguém
sofrer uma sanção qualquer sem que previamente tomasse conhecimento das regras disciplinares
da igreja. A finalidade primordial deve ser a prevenção ao cometimento das
faltas, não simplesmente a repressão por meio das punições aplicadas aos
faltosos. Convém ainda fornecer aos membros, sempre que possível, cópia do
estatuto, regimento interno ou resumo, contendo todas as regras sobre o
assunto, visando garantir ampla publicidade e evitar a alegação posterior pelo
disciplinado de que não conhecia as normas.
Na admissão de membros que são
absolutamente incapazes civilmente, deverá ser obtida autorização do representante legal, seja pai,
mãe, tutor ou responsável. O artigo 3º
do Código Civil enumera os casos em que as pessoas são impedidas de exercer
pessoalmente os atos da vida civil por incapacidade absoluta, quais sejam: “I - os menores
de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não
tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que,
mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.”. Desse modo, para que as
decisões tomadas pelo absolutamente incapaz tenham validade, o consentimento do
representante legal é indispensável, podendo ser anuladas a admissão, aplicação
de disciplina ou qualquer obrigação assumida pelo incapaz sem a observância
dessa formalidade.
Essa autorização do representante legal
deve constar no estatuto como exigência para admissão de membros. Na hipótese
de ser concedida oralmente, convém registrá-la em ata, com a assinatura do
representante legal. Deve constar também no estatuto todos os demais requisitos
exigidos pela igreja para o ingresso de alguém no corpo de membros, tais como:
possuir idoneidade moral, ética, sexual, familiar e social, conforme os
preceitos da Bíblia Sagrada; cumprir os deveres de membro; acatar a doutrina,
usos, costumes, regras disciplinares e demais disposições estatutárias e
regimentais da organização religiosa. Essas providências evitam aborrecimentos
futuros.
No que concerne à prática
da aplicação de disciplina propriamente dita, ressalta-se que o procedimento
previsto no estatuto ou regimento interno deve ser cuidadosamente seguido pela
liderança. O objetivo é assegurar a validade da medida aplicada, para não
ensejar questionamentos posteriores, inclusive judicialmente. Se o procedimento
for escrito, cada etapa deve ser cumprida e devidamente reduzida a termo,
manuscrito em livro próprio ou impresso por computador. Se a previsão é de
procedimento oral, a síntese do que for tratado e decidido em reunião deverá
constar em ata. As assinaturas dos responsáveis pela apuração e da pessoa
disciplinada devem constar em todos os documentos pertinentes.

A maior cautela em todo
esse processo está relacionada diretamente à privacidade do membro disciplinado
ou submetido a procedimento de apuração perante a igreja. É de se reconhecer
que nesses aspectos vários excessos foram cometidos no passado, com a exposição
pública exagerada da intimidade das pessoas, principalmente quando envolvidas
em pecados de natureza sexual. Não é sem razão que a Constituição Federal no
artigo 5º preconiza os seguintes direitos fundamentais: “X - são
invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de
sua violação;”.
Desse modo,
a disseminação de comentários e manuscritos ofensivos ou fotografias e
documentos sem respeitar a intimidade, privacidade, honradez ou a imagem das
pessoas perante a sociedade, pode caracterizar dano moral. O responsável pela
ofensa poderá se sujeitar ao pagamento de indenização por ordem do Poder
Judiciário, mediante ação própria intentada pelo ofendido, visando compensar o
abalo emocional e o constrangimento que sofreu perante as pessoas.

Por isso, o processo de apuração,
decisão e divulgação de sanção disciplinar aplicada, devem se restringir à
liderança, comissão de disciplina designada ou assembleia encarregada de tratar
o assunto, conforme previsto no estatuto ou regimento interno. Em qualquer
desses casos, cada um é responsável pessoalmente por eventual divulgação que
fizer a terceiros acerca dos fatos que tomou conhecimento na igreja, durante as
reuniões da liderança, comissão de disciplina ou assembleia, pois quem sai comentando abertamente
as faltas que foram tratadas internamente poderá causar dano moral contra a pessoa disciplinada e ser chamado a responder
pelo pagamento de indenização.
Enfim, observadas as regras, procedimentos e cautelas
acima comentadas, não há o que temer quanto a prática da aplicação de disciplina aos membros nas igrejas
evangélicas. Porquanto, estarão asseguradas todas as garantias constitucionais àquele que eventualmente for disciplinado, não podendo ser imputada à igreja nenhuma responsabilidade por dano moral.
Adiel
Teófilo