Título original: O
ESTADO É LAICO GRAÇAS A DEUS.
Por:
Ronaldo Vasconcelos.
É
vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I –
Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o
funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência
ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; (Art.
19 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988)
Estado laico: definição e surgimento
O
desenvolvimento do conceito de Estado laico como fato moderno depende
fundamentalmente do cristianismo. Ele tem suas raízes especialmente no
movimento reformado do século XVI e XVII. O reformador João Calvino, por
exemplo, afirmava a distinção entre reino espiritual e reino político da
seguinte forma: “Temos que considerar
cada uma dessas coisas em si, segundo as distinguimos: com independência uma da
outra”.[1] Para
Calvino, há leis específicas que regem cada uma dessas áreas; cada um desses
reinos é constituído por Deus para governar aspectos distintos da vida.
Naquela
época, o poder papal mantinha um duplo mandato, político e religioso. Foram os
reformadores que efetivamente colocaram em xeque essa união. Compreendiam que
Deus é soberano sobre os dois mandatos, mas ambos são distintos por lidarem com
aspectos diferentes da sociedade.
Além
disso, o movimento reformado foi fundamental para a formação futura das
democracias republicanas modernas, como, por exemplo, a Inglaterra e os Estados
Unidos. Visto que um governo totalitário busca unir as duas esferas de poder
(espiritual e política), transformando o Estado em religião, a separação desses
poderes é um dos grandes empecilhos para o totalitarismo. Por causa disso, o
cristianismo sempre será um grande inimigo das ditaduras e dos governos
totalitários.
O
Brasil é um país de grande maioria cristã. A nossa constituição reconhece isso
quando afirma que ela foi promulgada “sob
a proteção de Deus”. Essa expressão tem grande fundamento histórico, mas é
preciso reconhecer que há uma explicação teológico-filosófica por trás dela.
Foram
justamente os adoradores do Deus cristão que asseguraram as liberdades
elencadas na constituição. Somente em uma sociedade influenciada por uma
cosmovisão que acredita em um Deus pessoal, triúno e distinto da natureza é
possível vislumbrar os aspectos morais absolutos que regem essa sociedade,
independente da relação direta com esse Deus.
Em
outras palavras, os conceitos de dignidade da vida, democracia e laicidade que
conhecemos estão amparados pela noção de uma humanidade criada com dignidade
inerente, moralmente livre e plural. Não é necessário acreditar no Deus cristão
para ser beneficiado por essa sociedade, mas uma vez que seus fundamentos
basilares são retirados, a consequência será a sua ruína.
Por
isso, com exatidão, definiu o ilustríssimo jurista Dr. Ives Gandra Martins: “Estado laico é aquele em que as
instituições religiosas e políticas estão separadas, mas não é um Estado em que
só quem não tem religião tem o direito de se manifestar. Não é um Estado em que
qualquer manifestação religiosa deva ser combatida, para não ferir
suscetibilidades de quem não acredita em Deus.” [2]
Laicismo vs. Estado laico
Em
seu livro Imaginação Totalitária, o filósofo Francisco Razzo trata
da imaginação totalitária como tendo o seu ápice no desejo último de “glorificar o poder do Estado como detentor
do monopólio não do uso legítimo da violência, mas do monopólio simbólico da
verdade absoluta e da imortalidade, portanto, da experiência última da ordem
final e, consequentemente, da decisão de vida e a morte”.[3]
A
origem disso está na crença da autonomia da razão, que pressupõe ser ela capaz
de dar conta da realidade com neutralidade e independência das crenças
religiosas.[4] Essa suposta razão terá o Estado como manifestação
máxima e, consequentemente, o Estado será a expressão mais elevada da
sociedade. Ele será o único capaz de proporcionar ao indivíduo as suas
liberdades, devendo assim, intervir na família, relações comerciais, educação e
outras instituições, como o critério (supostamente) racional que dá significado
e coerência ao todo da sociedade.[5]
É
exatamente isso que ocorre no chamado laicismo,
quando a religião é relegada à vida privada e o Estado não só não é
religioso, mas também deve coibir as manifestações públicas religiosas. A
importância da religião é definida pelo indivíduo em sua vida privada, enquanto
que, para o Estado, é tratada negativamente, portanto não tem espaço público.
Esse laicismo, herdado pelo Iluminismo e Revolução Francesa, pais de todos os
governos totalitários da modernidade, é aplicado na França.
Brasil e Estado laico
No
Brasil, por outro lado, se reconhece o valor da religião para o indivíduo e
para a própria fundação do Estado. Não é à toa que símbolos cristãos podem ser
encontrados em repartições públicas, num reconhecimento de que o Estado
brasileiro é devedor da religião cristã. Nada disso afeta a laicidade adotada
pelo Brasil, pois a manifestação religiosa não é somente um direito do cidadão,
como também é um aspecto da humanidade.
Isso
pode ser atestado com o artigo 19 da Constituição. Esse artigo salvaguarda o
direito ao culto, ainda que esclareça que o culto nunca deve ser estatal. De
outra sorte, o Estado poderá, quando achar por bem, ter uma aliança de
colaboração com os grupos religiosos para o interesse público. Isso significa
que as igrejas podem ser ouvidas para ajudar o Estado a administrar
determinadas áreas.
Essa
“humildade” estatal é fundamental para a distinção entre Estado e Igreja. Isso
porque o Estado não estaria se sobrepondo sobre as instituições eclesiásticas,
as famílias, as relações comerciais, etc. O Estado é, ao invés disso, uma esfera
de soberania distinta (para usar o conceito do pastor holandês Abraham
Kuyper), administrada por leis próprias, tal como outras instituições.
A
recente discussão sobre a oração incluída no primeiro ato de pronunciamento do
presidente eleito Jair Messias Bolsonaro[6] precisa
levar em consideração a liberdade religiosa e de manifestação, mesmo de uma
figura pública. A oração em nada afeta a laicidade do Estado; pelo contrário, a
garante. Ao demonstrar que ele, o presidente eleito, está submisso a Deus e
comprometido com a verdade da sua Palavra, Bolsonaro faz menção ao seu
compromisso com a democracia, a justiça e o bem-estar do cidadão. Por meio da
oração, o presidente eleito está definindo o Estado como uma das instituições
da sociedade, mas não a mais importante.
–
[1] CALVINO, João.
Institutas. 3.XIX.15.
[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-nov-26/ives-gandra-estado-laico-nao-estado-ateu
[3] RAZZO, Francisco. Imaginação Totalitária: Os Perigos da Política como Esperança. São Paulo: Record, 2016, p. 241.
[4] Para ver a refutação desta crença veja DOOYEWEERD, Herman. Crepúsculo do Pensamento Ocidental. Brasília: Monergismo, 2018.
[5] Veja mais sobre isso em DOOYEWEERD, Herman. Estado e Soberania: Ensaios sobre Cristianismo e Política. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 39-96.
[6] Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/cria-um-pouco-de-preocupacao-diz-miriam-leitao-sobre-oracao-de-bolsonaro/
[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-nov-26/ives-gandra-estado-laico-nao-estado-ateu
[3] RAZZO, Francisco. Imaginação Totalitária: Os Perigos da Política como Esperança. São Paulo: Record, 2016, p. 241.
[4] Para ver a refutação desta crença veja DOOYEWEERD, Herman. Crepúsculo do Pensamento Ocidental. Brasília: Monergismo, 2018.
[5] Veja mais sobre isso em DOOYEWEERD, Herman. Estado e Soberania: Ensaios sobre Cristianismo e Política. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 39-96.
[6] Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/cria-um-pouco-de-preocupacao-diz-miriam-leitao-sobre-oracao-de-bolsonaro/
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