Adiel Teófilo
As igrejas evangélicas
são constituídas por pessoas que possuem o ideal comum de realizar atividades
religiosas. São organizadas livremente e funcionam de acordo com as liturgias,
usos e costumes de cada grupo confessional, amparadas pelas garantias e
liberdades previstas no artigo 5º,
inciso VI, e artigo 19, inciso I, ambos da Constituição Federal de 1988, e
artigo 44, inciso IV, e § 1º, do Código Civil. Dentre as suas finalidades,
podemos destacar a prática de cultos ao Senhor Deus, a divulgação do Evangelho
de Jesus Cristo e a abertura de novas igrejas ou congregações, bem como manter
ações ou entidades assistenciais e filantrópicas.
Essas
finalidades da igreja são inerentes à sua própria natureza como organização
religiosa, justificando sua existência na sociedade e estabelecendo os objetivos
que vão nortear a realização de todas as suas atividades. Por essas razões, o artigo 46 do Código Civil prescreve que
o registro da pessoa jurídica deve declarar os “fins”, além de outras informações relevantes, tais como “nome e individualização dos fundadores ou
instituidores, e dos diretores”. Consequentemente, as finalidades da igreja
devem constar expressamente do estatuto, que é o ato constitutivo da igreja, a
ser inscrito no Cartório de Registro das Pessoas Jurídicas.
O
Código Civil, artigo 50, prescreve
ainda a regra que se segue, aplicável a todas as pessoas jurídicas, inclusive
às organizações religiosas: “Em caso de abuso da personalidade jurídica,
caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o
juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe
couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações
de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou
sócios da pessoa jurídica”.
Observe
que essa regra, prevista na Lei nº
10.406, de 10/01/2002, que instituiu o Código Civil, especifica duas hipóteses de abuso da personalidade
jurídica, a saber: 1ª) desvio de
finalidade – ocorre nas
situações em que a pessoa jurídica é desviada dos fins pré-estabelecidos pelo seu
ato constitutivo; e, 2ª) confusão
patrimonial – consiste na confusão entre o patrimônio da pessoa jurídica e o
dos dirigentes ou administradores, que se utilizam da pessoa jurídica de forma abusiva
ou fraudulenta para compor esse patrimônio.
Analisemos
essas hipóteses mais detalhadamente, as quais podem acontecer em igreja evangélica, convenção de igrejas ou
convenção de ministros religiosos, constituídas na qualidade de organização
religiosa, seja de âmbito local, regional ou nacional. Os ABUSOS POR DESVIO DE FINALIDADE são atos ou atividades que o
dirigente realiza em nome da entidade, porém visando atender objetivos
completamente alheios aos propósitos estabelecidos no estatuto, que é a lei de
organização e funcionamento das igrejas e convenções, devendo ser observado pelos
líderes e liderados. Os desvios de finalidade que eventualmente podem ocorrer,
dentre outros, são os seguintes:
a) Participação na
política partidária
– o dirigente recebe político no púlpito, realiza campanha pedindo voto dos
fiéis ou se manifesta em jornais, revistas, emissoras de rádio ou televisão, atuando
em nome da instituição, entretanto não há previsão estatutária ou regimental e
nem possui autorização dos membros, que sequer foram consultados para saber se
concordam com essa atuação ou se aceitam as opções políticas da liderança
usando o nome da organização religiosa, principalmente quando se trata de
partido cuja ideologia é manifestamente contrária ao Cristianismo e aos
preceitos da Palavra de Deus; e,
b) Recebimento de vantagens
pessoais –
como contrapartida de apoio político ou de favores prestados a terceiros em nome
da entidade, o dirigente recebe bens ou dinheiro em proveito pessoal, ou cargos
na administração pública, para os quais indica familiares, amigos íntimos ou líderes
religiosos que inclusive recebem renda eclesiástica. Os membros não são
comunicados nem opinam acerca dessas vantagens e quando tomam conhecimento se decepcionam
diante das tramas de ganância e ambição.
Os
ABUSOS POR CONFUSÃO PATRIMONIAL ocorrem
quando o patrimônio da igreja ou convenção se confunde com o patrimônio pessoal
do dirigente ou administrador, em razão de artifícios que transferem
indevidamente para o particular os bens e recursos financeiros que deveriam ser
empregados em favor da entidade religiosa. Podem ocorrer os seguintes casos:
a) Obtenção de
vantagens ilícitas
– o dirigente ou administrador se apropria de recursos financeiros de forma
fraudulenta, mediante a utilização de notas fiscais superfaturadas, recibos
falsos, despesas não comprovadas ou celebração de contrato dispendioso que
beneficia o próprio líder ou pessoa da família. Essas movimentações ilícitas
podem ser acobertadas por artifícios da falta
de transparência financeira: não há prestação de contas; informações contábeis
não são divulgadas; não se faculta aos membros o acesso ao movimento detalhado
de receita e despesa; e, qualquer iniciativa de consulta aos registros
financeiros é tratada com antipatia e hostilidade. A contabilidade torna-se verdadeira
caixa preta, mas os sintomas de
confusão patrimonial acabam aparecendo nas ostentações;
b) Recebimento de
prebenda desproporcional – aproveitando-se da lacuna pela falta de previsão, seja
no regimento interno, ato deliberativo da diretoria ou decisão da assembleia
geral de membros, estipulando valor da renda eclesiástica, o dirigente retira para
si valores exagerados, não observando média ou proporção mensal dentro da receita
e despesa, nem destinando recursos razoáveis para as ações que cumprem as
finalidades da organização, a qual se torna meio de enriquecimento pessoal em
detrimento dos seus fins sociais; e,
c) Aquisição irregular
de bens
– pode acontecer em igrejas que não possuem estatuto, mormente aquelas que
funcionam há bastante tempo, tem renda expressiva e patrimônio considerável, todavia
não existem como pessoa jurídica de direito privado, por não possuir estatuto definindo
sua organização e funcionamento. Os bens que deveriam constar em nome da entidade
são cadastrados ou registrados em nome da pessoa física do dirigente, como se
fossem adquiridos com recursos próprios, demonstrando completa confusão patrimonial
entre o que é da instituição e o que é particular.
É
possível que em determinados casos o dirigente não tenha agido de má-fé.
Principalmente nas igrejas que crescem rapidamente e logo adquirem patrimônio,
sem que a organização religiosa tenha existência como pessoa jurídica. A solução
nesses casos é providenciar a inscrição do estatuto em cartório e tão logo
possível transferir os bens da igreja para o nome da própria organização
religiosa. É o mínimo de lisura que se espera de um dirigente fiel e bem
intencionado.
Os
abusos acarretam consequências cíveis e
criminais para quem comete desvios de finalidade ou confusão patrimonial. Podem
responder criminalmente, quando ficar comprovada a obtenção de vantagem ilícita
mediante a prática dos crimes de estelionato, apropriação indébita ou uso de
documento falso, dentre outros delitos dessa natureza. O artigo disponível
neste blog, A IGREJA DENTRO DA LEI – 6 –
Práticas ilícitas, aborda de forma mais detalhada os ilícitos penais.
No
âmbito cível, os responsáveis poderão ser compelidos judicialmente a restituir
os bens e valores que se apropriaram ilicitamente. Outra consequência é a
possibilidade de ser aplicada a medida prevista na segunda parte do artigo 50 do Código Civil: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado
pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a
requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no
processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações
sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa
jurídica”. (grifo nosso)
Trata-se
de provimento judicial denominado Desconsideração
da pessoa jurídica. Funciona deste modo: se os recursos financeiros da
igreja ou convenção não forem suficientes para saldar suas dívidas e obrigações,
evidenciando que ocorreu desvio de finalidade ou confusão patrimonial, os
credores podem requerer ao juiz que desconsidere a personalidade jurídica da organização
religiosa, para que os efeitos de determinadas obrigações sejam estendidos aos
bens particulares do dirigente que praticou esses abusos, visando satisfazer as
obrigações contraídas em nome da instituição. O Ministério Público pode também
requerer essa medida judicial sempre que a sua intervenção no processo estiver
prevista em lei.
Não
bastassem as implicações legais, quando esses abusos vêm à tona acarretam consequências
ainda mais lamentáveis. A decepção e o constrangimento ferem mortalmente a
confiança que membros depositaram nos dirigentes. Inúmeros cristãos se afastam
dos templos, esfriam na fé ou saem à procura de igreja cuja liderança seja
íntegra diante de Deus e dos homens. Os escândalos maculam a imagem do
Evangelho perante a sociedade e as pessoas passam a ver as igrejas evangélicas com
a desconfiança cada vez maior.
Convém
abordar também, sob o ponto de vista da atuação religiosa propriamente dita, os
ABUSOS DA FUNÇÃO ECLESIÁSTICA. Ocorrem
nas situações em que o dirigente, ao desempenhar a função eclesiástica nos assuntos
internos da igreja ou convenção, ultrapassa os limites ou distorce o propósito
das prerrogativas e atribuições que lhe são conferidas pelo estatuto ou
regimento interno. É o mau uso da função. Os principais casos são os seguintes:
a) Nepotismo
religioso – acontece quando o dirigente privilegia familiares nas consagrações
eclesiásticas ou funções administrativas, por vezes recebendo remuneração, sem respeitar
critérios definidos no estatuto ou regimento interno, nem consultar a diretoria
ou assembleia geral quando não há previsão de critérios. Convém lembrar que a administração
pública deu passo significativo no combate ao nepotismo no Brasil, com a edição
da Súmula Vinculante 13, pelo Supremo Tribunal Federal, cujo exemplo
pode muito bem ser imitado pelos dirigentes das organizações evangélicas que realmente
desejam ser luz do mundo;
b) Suprimir ou burlar
eleições
– a supressão ocorre quando o
estatuto prevê a escolha eletiva para determinados cargos ou funções, no
entanto a eleição deixa de ser realizada propositalmente, a exemplo do
dirigente que se apossa do cargo ou designa pessoas sem respeitar o procedimento
eleitoral previsto nas normas da igreja ou convenção. Nada impede que certas funções
eclesiásticas sejam exercidas por tempo indeterminado, desde que exista previsão
estatutária nesse sentido, seja essa a vontade geral dos membros e a entidade
esteja cumprindo os seus fins;
A
burla de eleição se caracteriza por atos atentatórios à lisura, transparência
e liberdade das eleições, exemplos: impedir o voto direto e secreto; fazer rodízio
dos integrantes de diretoria sem dar aos membros a liberdade de escolha; admitir
voto de membro que não cumpre requisitos estatuários ou regimentais para
favorecer candidato; e, consagrar ministros religiosos para aumentar votos a favor
de candidato em convenção; e,
c) Atender interesses
escusos –
a decisão tomada pelo dirigente aparenta ser correta e adequada, contudo oculta
interesses desleais, desonestos ou autoritários. Eis alguns exemplos: designar parentes ou amigos
íntimos para dirigir igreja com maior renda ou situação geográfica melhor; destituir
dirigente de congregação por não aceitar imposições políticas da liderança;
hostilizar por qualquer meio ministro religioso ou membro por discordar de decisão
administrativa do dirigente.
Enfim, não faltam episódios
submetidos ao Poder Judiciário em todo país para corrigir abusos ou impedir excessos
injustificáveis, originando demandas até entre cristãos perante infiéis, para completa
vergonha nossa (I Coríntios 6.1-7). Portanto, os excessos no exercício da função
eclesiástica acarretam graves consequências no meio evangélico. Concorrem para o
declínio da autoridade moral dos dirigentes e a decadência espiritual dos
membros, afastando o Espírito Santo de Deus e causando prejuízos irreparáveis. Aos
dirigentes, assim diz as Escrituras: “Apascentai o rebanho de Deus, que está entre vós, tendo
cuidado dele, não por força, mas voluntariamente; nem por torpe ganância, mas
de ânimo pronto; Nem como tendo domínio sobre a herança de Deus, mas servindo
de exemplo ao rebanho” (I Pedro 5.2-3).
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